Relato fantástico (e bem íntimo!) de uma pessoa comum, como qualquer um de nós, que descobriu o prazer de correr longas distâncias, retirado de um dos blogs sobre corridas de longa distância que eu leio.
Não tem muito a ver diretamente com o assunto do tópico, mas é bom pro pessoal aí que gosta de colocar coisas estranhas no corpo e ainda acham isso bom, ver que existem muitas outras coisas na vida que dão prazer imenso sem destruir o corpo, te ajudam a ser mais saudável, a ter uma qualidade de vida melhor e, aí sim o que tem a ver com o tópico, ainda te ajudam a ficar mais disposto para o trabalho.
Sei que tem um pessoal aqui no fórum, que corre ou já correu, que vai gostar desse texto. 
[quote]Maratonando a vida
Conheçam Kinha. Kinha Costa, a Mamãe Noel atlética aí ao lado. Graças a uma prazerosa troca de e-mails, já posso dizer um bocado sobre essa brasileira, mãe de duas filhas, que há sete anos mora na África do Sul, atualmente em Durban. Mas ninguém faria isso tão bem quanto ela. E não só pelo óbvio “conhecimento de causa”. Seu relato é irretocável. Deliciem-se.

"Tudo começou porque a minha cama andava muito pouco atraente. Os acasalados sabem do que estou falando. O maridão de tão estressado não se deitava, tombava. Quando não roncava em dois minutos, a leitura das duas parcas páginas do não-ficção, ‘Os ditadores’, tinha a função de puxar a cortina do sono e disfarçar o desejo. A trepada que andava marcada pro fim de semana sumiu como grana no bolso de duro. A coisa ficou tão lotérica, e as iniciativas abortadas me faziam tanto mal quanto a passiva espera, que resolvi levantar - como se a minha outrora aconchegante cama, estivesse recheada de formigas roceiras - pra gastar a energia acumulada em alguma coisa produtiva.
Tem mulher que corre pros shoppings pra queimar dinheiro como vingança besta pela ausência do falo. Outras vão pras academias levantar peso, a moral de alguns e o ego. Algumas arrumam um toyboy pra colocar as contas em dia e queimar a energia em excesso. Outras escrevem romances eróticos, umas choramingam pelos cantos, outras reclamam, reclamam e reclamam. Umas se dedicam às fofocas, outras à comida e crescem para os indesejados lados… Eu resolvi correr pra queimar o que me queimava.
Assim, num domingão, abri mão do improvável, e fui, somente de onda, participar de uma corrida de 21,1 km. Pra minha sorte, o senhor das águas resolveu abrir todas as torneiras dos reservatórios celestiais. O céu de compotas escancaradas cachoeirou divinamente enquanto eu, desconfiada, pensava que a água que caía era xixi dos habitantes das alturas. Porém, nunca me senti tão lavada e levada. De repente me vi pequenina entre lajes e ribanceiras a desafiar relâmpagos e trovões na minha longínqua Serra da Formiga. Abençoado xixi!
Terminei num tempo razoável para uma atleta de primeira corrida. Daí não parei mais. Fui subindo pra 25, 32, e cheguei finalmente à maratona de vera, 42,2 km. É chão!
Era Dia do Trabalho, o mundo queimava em manifestações de trabalhadores insatisfeitos. Gente apanhou e gente foi presa. Eu somente corri a maratona Vida e Liberdade. Fiz um percurso maravilhoso. A primeira metade ladeando o Oceano Índico e em seguida cortando o meu bairro. Passei pela minha rua, e juro, não senti vontade de me esconder no aconchego do meu rancho. Segui em direção ao centro e a chegada feliz ao estádio de atletismo no coração da cidade de Durban, depois de cinco horas e quinze minutos. Ufa!
Maratonando as ruas descobri que meus olhos mudaram em relação à cidade. As ruas e suas esquinas percorridas me contam histórias, relatam fatos. Cada ladeira me lembra alguma coisa específica: uma dor no músculo, parada para água, vontade de fazer xixi, menstruação escorregando pernas afora, minhas filhas na torcida… Descobri bairros nunca visitados, edifícios nunca vistos, casas nunca apreciadas, pontes nunca atravessadas, galerias nunca visitadas, restaurantes nunca sentados e bares nunca freqüentados. Estou descobrindo a minha cidade adotada. Os bairros populares, as favelas, a outra cidade que mora dentro da cidade e que vive a beira das ilhas reservadas aos que têm poder de consumo. Os pés que percorrem a cidade ficam alinhados com os olhos.
Botar as frustrações pra correr foi o que comecei a fazer e morri de rir quando uma amiga contou como foi iniciada no atletismo: durante a missa dominical, ela comentou alguma coisa com o marido, este muito compenetrado nas palavras do santo padre a discursar sobre o Evangelho de São Marcos, mandou-a calar-se, pondo o dedo indicador contra os lábios. No final da cerimônia, ela, ofendida com a forma que foi tratada, discutiu, ficou bicuda e resolveu voltar pra casa a pé, dispensando o conforto do carro e a companhia dos seus.
No seu dia de azar, coitada, ao sair da igreja começou a cair uma chuva fininha que engrossou e virou toró. Vestia um jeans branco e camiseta Guess da mesma cor, um colar laranja, bijou fina, dava um toque no figurino, que não foi criado para suportar maratona debaixo de chuva. O colar derretendo pintava a blusa Guess da cor da seleção da Holanda. Conquistando os quilômetros rumo a casa debaixo de chuva grossa, quase morreu de raiva quando foi ultrapassada pelo carro que transportava os seus e o motorista, seu amado esposo, deu adeuzinho sorrindo.
A atleta de última hora bufando acelerou as pernadas pra ganhar a corrida e cruzar a linha da chegada antes das quatro rodas. Mas, qual nada! Todos a esperavam na esquina a um quarteirão de sua casa. Foi então que o marido se chegando falou:
- Então, curtindo? Descobri o que você gosta de fazer quando está chateada. Tem gente que come, tem gente que dorme, tem gente que surfa e tem gente que corre!
Ele acertou. Ela passou a correr pra valer, mas quando aparece nas competições tem sempre um gaiato perguntando:

Na África do Sul as relações pessoais ainda funcionam em grupos étnicos e religiosos. Tudo ainda é muito branco com branco, preto com preto e indiano com indiano e de preferência zulu com zulu, xhosa com xhosa, mulçumano com muçulmano e hindu com hindu. É compreensível para um país que não faz muito tempo aboliu a lei que proibia o casamento entre pessoas de diferentes raças. Nesses anos, sempre me perguntei onde estava a democracia racial, a nação arco-íris que Mandela tanto lutou pra criar. Mas agora, vejo nas corridas essa mistura de cores, crenças e classes.
Os participantes têm os mais diversificados biótipos, crenças, cores e orientação sexual: tem gordinhos e gorduchos, pequenos, galalaus, magrelos, malhados, gays, barrigudos, sapatas, gente com tênis Nike e gente descalça. Já corri ao lado de um cara de pé amputado, outro com um caroço na coxa e uma moça com torso atrofiado. Perdi pra todos eles. Difícil traçar o perfil dos participantes. Na verdade é um caldeirão de gentes e culturas.
Uma outra coisa bacana é a premiação, tirando os três primeiros lugares, não existe diferença na hora de receber os presentes. A todos que terminam no tempo regulamentar cabe a mesma camiseta, todos recebem o mesmo copo plástico com chocolate ou chá, o mesmo saquinho com água que mais parece nosso dindin.
Estou viciada.
O problema é que a minha cama voltou à ativa e anda muito interessante, e o meu amor não entende as minhas escapulidas nas auroras dominicais pra ir ao encontro de outros viciados no ato de correr. Correr somente pelo prazer de conquistar pedaços de chão. Somente por sentir que o corpo funciona muito melhor depois de 10 km percorridos.
Chegar ao final de uma corrida por menor que seja é uma satisfação difícil de explicar. É como se o corpo produzisse um tipo de droga e, ao cruzar a linha de chegadas liberasse nos canos do atleta, produzindo uma sensação de profundo bem-estar.
Estou conseguindo administrar e aproveitar as duas coisas: a cama gostosa e as corridas aurorentas. E vale dizer que a combinação sexo-esporte tem funcionado bem melhor do que somente a fuga inicial que foi driblar ‘a falta de’.
E descobri que a vida é um emaranhado de maratonas. Meu Deus, tantas! Quantas? Correr contra a grana curta no final do mês é esporte duro que exige muita habilidade; correr contra o tempo - tempo, ah, corrida ingrata, essa ninguém ganha; correr pra cuidar da alma e crescer como espírito é ginástica de longa distância; correr contra a deadline de uma doença incurável é a mais angustiante das corridas; correr ao lado dos filhos adolescentes é exercício que precisa de muito alongamento, paciência e humildade. São tantas as maratonas na vida que correr somente pra conquistar um percurso é um grande barato."[/quote]